À Mente Viva
“ (...) ela ( a Universidade) inocula na sociedade uma cultura que não foi feita para formas provisórias ou efêmeras do hic et nunc, mas para ajudar os cidadãos a viverem seu destino hic et nunc (...); donde essa vocação expressa pela dedicatória no frontispício da Universidade de Heidelberg: “À mente viva.” ”
Edgar Morin, A Cabeça Bem–Feita
O período de expansão acelerada, experimentado atualmente pelo ensino superior em nosso país, nos leva a debates cada vez mais necessários e decisivos para o futuro da Universidade brasileira e, conseqüentemente, da elite pensante nela formada. As transformações intensas do mundo exigem um modelo universitário que prepare cidadãos para responder aos desafios de seu tempo, sem deixar de lado sua missão primeira: a da instituição que conserva, memoriza, integra e ritualiza uma herança cultural de idéias, saberes e valores. A apresentação do anteprojeto da Lei da Educação Superior, recentemente apresentado pelo Ministério da Educação, reacendeu, e de forma intensa, o debate acerca dos rumos da educação superior no país e nos leva a refletir sobre o papel da Universidade na sociedade, na formação do indivíduo e na construção do conhecimento, mas não só nisso. Também nos faz pensar em como a sociedade, o governo e os indivíduos principalmente, devem interferir na Universidade para torná-la um verdadeiro templo de saber – não do saber estéril, estagnado, mas daquele vital, que prepara o futuro salvando o passado.
O sentido de “público” dado à Universidade deve ganhar outros níveis de interpretação – como argumenta Renato Janine Ribeiro no livro “Humanidades: um novo curso na USP” –, deve ser ampliado e não referir-se apenas à gratuidade, mas principalmente à “idéia de que o bem comum, a coisa pública, a casa de todos está sendo beneficiada”. É principalmente essa concepção de educação como “bem público” que o anteprojeto defende – segundo o Ministro Tarso Genro em entrevista à revista Carta Capital. A Universidade deve permitir a democratização das elites intelectuais, científicas, culturais, gerenciais e artísticas, o acesso de pessoas de classes sociais variadas ao conhecimento. O Ensino superior deve deixar de ser simples formador de profissionais, e escancarar suas portas para o desenvolvimento de pesquisas e a formação de indivíduos com real interesse no ramo – e digo escancarar porque ainda que por uma pequena fresta, já existe abertura de portas para esses objetivos, especialmente nas instituições públicas. A presença de uma coerência constitucional no texto da Lei que guiará os rumos das políticas do ensino superior no Brasil significa um avanço democrático. Segundo Tarso Genro, o limite da reforma será seu caráter republicano. Isso significa uma maior abertura da Universidade à sociedade, seja pela maior integração e participação de um setor no outro, seja pela composição da nova elite universitária nacional: “uma transversalidade na estrutura social, de modo a permitir que a sociedade se torne mais republicana e democrática”. O ensino superior público deve oferecer uma qualidade que possibilite aos graduandos um futuro retorno de investimento através da excelência de serviços prestados à sociedade, e preparar um profissional para o futuro não significa treiná-lo para o mercado. Significa sim dar-lhe uma base sólida de conhecimento que o torne apto para adaptar-se às mudanças velozes do mundo. Renato Janine Ribeiro defende uma simulação de mercado com “espírito antropológico” no intuito de mostrar os jogos de poder, os conflitos e as tensões que encontrarão os alunos no mercado, o que lhes permitiria “aprender a relativizar as situações que aparecerem como determinantes ou dominantes”. O ensino superior privado deve submeter seus interesses e especialmente o lucro a um plano nacional de educação, deve servir aos interesses públicos pelo menos nesse aspecto. Quero dizer que se não interessa à instituição privada o investimento em pesquisa para o desenvolvimento nacional ou uma relação próxima com a sociedade, que ela pelo menos cumpra bem a tarefa de formar profissionais, dentro dos parâmetros que definem uma boa formação no país.
Uma estrutura universitária com um modelo de transmissão de conhecimento que estimule o pensamento original permite o avanço dos saberes já instituídos. A Universidade deve esforçar-se na tarefa de formar esses pensadores. Contudo, a interferência individual do graduando na construção do seu currículo – e em sentido amplo, do conhecimento (adquirido/construído) neste sintetizado – me parece decisiva na qualidade da formação do mesmo. Cabe ao aluno a busca pela excelência de formação através do aproveitamento de recursos oferecidos e da participação na vida política dentro e fora da academia, o que revela o essencial papel formador do ensino fundamental e médio no amadurecimento de tal consciência. Se os educadores devem encarar o ensino como missão e preparar as mentes para responder aos desafios e incertezas da vida com uma inteligência estratégica, os educandos devem estar dispostos a se colocar de tal forma no mundo, a tornarem-se interventores com uma aposta num mundo melhor. O conhecimento deve ser seu principal instrumento, o já sabido e o que evolui a partir desse.
Provavelmente, a vivência de uma Universidade plena na formação de cidadãos e profissionais ideais seja apenas uma quimera, uma utopia. A perfeição parece não se adequar ao perfil humano, sempre errante e plural. São muitos os sonhos, os ideais e as necessidades de pessoas diferentes em diferentes lugares do mundo, ou em regiões diferentes de um mesmo país. Ainda que se proponha universal, a Universidade se encerra em modelos limitados, seja pela Constituição de um país, ou pela capacidade humana, ainda restrita por estar em evolução. O importante é não perder o ideal de vista, não deixar de apontar os erros na intenção de corrigi-los, nem de gestar soluções para os problemas. Não desacreditar de todo na Utopia. Só a perseverança e a fé em um objetivo, aliadas à ação prática, nos fazem chegar a ele, ou ao menos perto. É preciso que todos os cursos, a exemplo do curso de Humanidades da USP, se proponham sempre experimentais. É preciso também fortalecer os vínculos sociais, seja através da inclusão, da extensão, da participação – da comunidade acadêmica na sociedade e vice-versa – ou da experimentação. Por fim, é preciso lembrar-se sempre da sábia dedicatória universitária: “À mente viva”.