Mundo da Fantasia

Consumo Cultural Infantil em Tempos de Globalização

 

“Saiba: todo mundo foi neném
Einstein, Freud e Platão também
Hitler, Bush e Saddam Hussein
Quem tem grana e quem não tem”

Arnaldo Antunes

Consumidores Transnacionais
Consumo, Produção de Sentido
e Globalização


O consumo é uma das características mais marcantes da sociedade contemporânea. Fala-se sempre na chamada “cultura de consumo” como uma conseqüência da dominação capitalista e tende-se a analisar os consumidores pela ótica behaviorista – como “tábuas rasas” condicionados pelos estímulos da publicidade e dos discursos dos meios de comunicação. A perspectiva dos Estudos Culturais nos abre novas possibilidades de interpretação do consumo, ao considerar o ato de consumir como um ato de produção de sentido, que não reflete os bens apenas como produtos de mercado, mas com funções que vão além desta. Como esclarece Nestor García Canclini:

“O confronto das sociedades modernas com as “arcaicas” permite ver que em todas as sociedades os bens exercem muitas funções, e que a mercantil é apenas uma delas.” (Canclini, 1995:66).

Ao consumir um produto cultural e o modo como faz o mesmo implica o sujeito em uma rede de construção de sentido. Stuart Hall, em um estudo sobre codificação e decodificação do discurso midiático, define o processo comunicacional como “uma estrutura produzida e sustentada através da articulação de momentos distintos, mas interligados”, ou seja, a comunicação não é definida por apenas uma das partes envolvidas no processo, e sim por todas as partes envolvidas. Se uma das partes não consegue “decodificar” a mensagem, o fluxo de informação é rompido e o processo não se concretiza. Hall ressalta ainda que “enquanto cada um dos momentos, em articulação, é necessário ao circuito como um todo, nenhum momento consegue garantir o próximo.” O campo da recepção define a produção de sentido.

Para Ana Carolina Ecosteguy, a redefinição de conceito de cultura impulsiona a busca por novas abordagens:

“A expansão do significado de cultura propiciou considerar em foco toda a produção de sentido. E, ao enfatizar, a noção de cultura como prática, se dá relevo ao sentido de ação, de agência na cultura.” (Ecosteguy, 2001:157).

Na sociedade contemporânea, o consumo influencia principalmente a construção de identidades. Há algum tempo, quando o Estado tinha uma força central na sociedade e o processo de globalização ainda não existia como tal, e sim como um processo de internacionalização, as identidades apoiavam-se nas marcas características da nação e os sonhos de consumo, refletiam uma valorização do próprio, do próximo. O processo de globalização confunde os limites do próprio e do alheio. Os bens materiais e intelectuais circulam por todo o mundo e perdem relação com seu lugar de origem. É nesse contexto que se formam as identidades das novas gerações de consumidores:

“Nas novas gerações as identidades se organizam menos em torno dos símbolos histórico-territoriais, os da memória pátria, do que em torno dos de Hollywood, Televisa ou Benetton.” (Canclini, 1995: 38-39).

O acesso natural a diversas culturas e a visão globalizada do mundo sem raízes nacionais fortes redefine o perfil de crianças e jovens que começam a fixar valores identitários. Há uma reelaboração do próprio e uma redefinição do senso de pertencimento e identidade “organizado cada vez menos por lealdades locais ou nacionais e mais pela participação em comunidades transnacionais ou desterritorializadas de consumidores” segundo Canclini. Os valores e tradições locais, as marcas nacionais, os repertórios folclóricos não desaparecem, mas se incorporam às culturas transnacionais com menos força. A vida social se desloca dos centros cheios de história e impregnados de marcos identitários locais para as periferias e ambientes cada vez mais impregnados da cultura cosmopolita contemporânea. Em um estudo sobre Bogotá e São Paulo, Armando Silva detectou uma preferência - cada vez maior quanto menor a idade – dos jovens, pelos chamados “não-lugares” como shoppings, aeroportos e estações de metrô, que se imitam em qualquer parte do mundo e refletem a transnacionalização da cultura. Essas preferências revelam que a natureza cosmopolita da cultura globalizada, é marca cada vez maior na identidade da geração que cresceu nesse contexto social. O simples fato de ter o shopping como local preferencial para passeios, encontros e consumo, externaliza uma construção de sentido. Nesses lugares, o jovem se sente à vontade com a sua identidade cheia de referências globais que ganham significação em meio a tantas outras dessas.

Seguindo essa tendência, surgem grandes “shoppings culturais”, que agregam em um só lugar – e na maioria das vezes também dentro dos shoppings – livraria, banca de jornais e revistas, loja de discos, locadora de vídeos, papelaria, confeitaria, lanchonete e tudo que for apropriado para montar um cenário que ofereça toda sorte de bens culturais globais que se possa imaginar. Essa funcionalidade atente também às demandas de aceleração da vida cotidiana. Em um só lugar é possível encontrar vários serviços enquanto os filhos – crianças e adolescentes – brincam e se entretém em um espaço especialmente preparado para que eles também possam fazer suas escolhas culturais de consumo, atuando na construção de suas próprias identidades. É no contato com os livros, os discos e os filmes especialmente endereçados para si, que as crianças começam a definir seus gostos, a fixar seus valores e a perceber o mundo a partir de conceitos pessoais que vão se internalizando com o tempo. Os adolescentes, que já passaram da fase do primeiro contato e possuem agora um repertório básico que lhes permitem leituras mais avançadas, encontram uma incrível liberdade como leitores. O psicólogo Jean Piaget defendia que, nessa fase, “o ser humano está tentando dominar os elementos que lhe faltam para a razão adulta. Precisa aprender a lidar com idéias abstratas e, por isso, precisa ler livros que lidem com abstrações”. É nessa fase que começam a se definir predileções e a se delinear as marcas de personalidade, ou seja, começa a emergir aí, uma identidade cultural, refletida nos hábitos de consumo pessoal e social do sujeito.

O perfil do consumidor infanto-juvenil se elucida a partir da observação desses hábitos de consumo, que nunca se afastam do patrulhamento paterno e da cultura hegemônica da geração que cresceu num mundo que já não reconhece suas fronteiras nacionais como antes. Os valores cosmopolitas se manifestam de maneira cada vez mais clara nos produtos culturais infanto-juvenis, especialmente nos livros, que narram histórias de várias partes do mundo, refletindo valores, culturas e modos de vida muito diversos. Os contos de fadas e os livros didáticos dividem espaço nesse mercado hoje com narrativas fantásticas inglesas, histórias baseadas em diferentes tradições religiosas vindas da Índia ou da China, por exemplo, superproduções norte-americanas e novos heróis japoneses. As produções nacionais não ficam de fora, mas não tem como objetivo o fortalecimento de um sentimento pátrio como na época de Monteiro Lobato, embora este continue a fazer sucesso entre os pequenos.

Fábrica de Sonhos
Pensando a Produção Literária
Infanto-Juvenil

Os trabalhos de Stuart Hall sobre codificação e decodificação dos produtos midiáticos mostram claramente que para o processo comunicacional ser concluído de forma satisfatória, os códigos aplicados na produção do bem cultural devem ser entendidos pelo receptor-modelo, para que sejam decodificados dentro de um limite pressuposto na mensagem. Isso quer dizer que a linguagem, o formato e mesmo as imagens ou ritmos que se incorporam aos códigos da mensagem codificada no produto cultural devem significar algo a esse receptor, devem fazer parte do seu universo. Para Hall, o processo de codificação é feito com base na “estrutura dos discursos em dominância”:

“Os domínios dos “sentidos preferenciais” têm embutidos, toda a ordem social enquanto um conjunto de significados, práticas e crenças: o conhecimento cotidiano das estruturas sociais, do “modo como as coisas funcionam para todos os propósitos práticos nesta cultura”; a ordem hierárquica do poder e dos interesses e a estrutura de legitimações, restrições e sansões.”

Os produtos endereçados ao público infanto-juvenil codificam suas mensagens de acordo com o universo de seus receptores. Embora alguns literatos, ainda questionem a existência de uma literatura genuinamente infanto-juvenil e muita confusão seja feita sobre a definição desse termo, a codificação específica desses produtos é muito clara, especialmente nos produtos destinados as faixas etárias mais baixas. Essa codificação leva em conta também as expectativas de pais e professores, que compram ou recomendam livros. As funções didáticas e interativas estão sempre presentes.

No campo editorial, temos alguns destaques como os selos lançados pela Companhia das Letras para atender o público infantil, a “Companhia das Letrinhas” – que tem entre suas publicações um dos maiores clássicos brasileiros recentes nesse campo: A Arca de Noé de Vinícius de Moraes – e pela Objetiva que também lançou um selo especial para jovens e crianças. A editora Todo Livro é especialista em livros educativos para as menores faixas etárias e tem também preços mais acessíveis. A Melhoramentos possui uma série de livrinhos infantis, alguns da Disney, mas o grande destaque fica com as obras de Ziraldo. A Rocco tem um bom catálogo dedicado ao público juvenil, e entre seus livros, o fenômeno Harry Potter. Fechando os destaques editorias, a editora Conrad, especializada em títulos juvenis e em expansão nas prateleiras.

As estratégias de endereçamento vão desde a apropriação de grandes escritores da literatura nacional adaptados para crianças, apropriação de gêneros, e subprodutos com personagens bem sucedidos à boa oferta de produtos educativos. Ora visam aos pais e educadores, ora aos filhos. Os pais decodificam a mensagem sobre qualidade do produto, confirmada em referências do seu próprio universo. Os filhos decodificam a mensagem do mundo mágico e fantástico que o espera, da possibilidade de vencer limites e alargar seus horizontes, ou mesmo de encantar-se com uma boa história e a seqüência dela. Entre os escritores apropriados pela literatura infanto-juvenil, textos de Carlos Drumond de Andrade com ilustrações de Ziraldo, Machado de Assis, Rubem Braga, Zélia Gatai e Lima Barreto.

Os aspectos de globalização da cultura também se apresentam na oferta cada vez maior de títulos que introduzem universos culturais muito distantes, que vão além do universo dos contos de fadas e mesclam culturas ou introduzem novos conceitos culturais ao universo infantil.

O Fantástico Mundo dos Livros
Consumo, Decodificação e
Construção de Sentidos.

Os estudos sobre a origem da literatura infantil indicam que a preocupação com livros específicos para crianças, provavelmente surge a partir do século XVII, na Europa clássica e absolutista com influências que vão desde os contos e narrativas fantásticas orientais até os contos medievais. É nessa época que a criança começa a ganhar espaço na sociedade como um ser diferente do adulto e com necessidades próprias. O desenvolvimento desse gênero literário e sua ampla expansão nos dias de hoje, permitem que o livro seja um objeto cultural de acesso relativamente fácil a crianças e adolescentes. Através dele são formadas gerações de leitores.

O consumo de livros infanto-juvenis, contudo, não é um hábito assim tão acessível. Os preços são muito variados, mas a maior parte dos produtos chega a cifras bem altas. Nem por isso, o mercado é pouco movimentado – até o ano passado era o responsável pelas maiores cifras do mercado editorial brasileiro. Esse aspecto, aliado à tendência cosmopolita dessa nova geração de consumidores, apontada na introdução deste trabalho, definem a localização dos grandes centros de consumo cultural editorial contemporâneos, que dedicam espaços especialmente preparados para esse público – crianças e adolescentes que já há algum tempo, formam suas identidades a partir de um contexto sócio-cultural híbrido. Essas identidades refletem hábitos culturais adaptados à transnacionalização da cultura como a também já citada preferência pelos chamados não-lugares. Em Salvador, a localização principal desses centros de consumo cultural é nos grandes shoppings dos bairros de classe média alta (Barra e Iguatemi), ou em Mega Stores em bairros por onde circula a mesma classe.

Passeando pelas livrarias dos dois shoppings, Barra e Iguatemi, percebe-se que a maioria delas vende livros para crianças da mesma forma que o faz para adultos: em prateleiras altas, sem exposição de capa, etc. A livraria Siciliano, contudo, aposta em novas estratégias para conquistar não só os clientes infanto-juvenis. As duas filiais da rede nos shoppings de Salvador dispõem de espaços diferenciados para os consumidores infanto-juvenis e atende a duas demandas de uma só vez: por um lado, oferece a esse consumidor a possibilidade de sentir-se contemplado enquanto tal, por outro, permite que pais e responsáveis façam sua escolhas enquanto os pequenos se divertem.

O espaço preparado para conquistar os consumidores que tem até 15 anos em média tem prateleiras mais baixas, bancos e mesas coloridas, piso decorado e até alguns brinquedinhos. O cd player é também mais baixo e decorado com a figura de um urso. O clima é o mais descontraído dentro da loja e não raro, encontramos pais contando histórias para as crianças que ainda não sabem ler. As que já sabem escolhem os livros e lêem mostrando-se muito à vontade no espaço. Algumas vezes é possível observar também algumas conversas entre os pequenos sobre os personagens.

Na Mega Store Vídeo Hobby/ Nobel, na Avenida Manoel Dias, na Pituba há um espaço ainda maior e mais segmentado em relação ao resto da loja, dedicado ao público em questão. Esta loja, que não fica dentro de shopping, reproduz também a ambientação de um não-lugar e tem em seu interior, uma “casinha” onde ficam os livros infanto-juvenis, uma televisão que passa vídeos destinados ao mesmo público, e também uma mesinha colorida com cadeiras e brinquedinhos. Há livros espalhados pelo chão e o clima é ainda mais descontraído, visto que aí, o ambiente desse público é separado dos outros quase completamente.

Nas três lojas observadas, a disposição dos livros nas prateleiras é estrategicamente usada para atrair a atenção do público. As capas estão sempre à mostra para chamar a atenção para os livros – sempre muito coloridos – e a altura da prateleira em que se encontra cada item é respectiva ao público. Os itens mais caros e mais pesados se encontram nas prateleiras mais altas e pressupõe um maior interesse dos pais. As estratégias usadas para atrair a atenção dos pequenos que ainda não dominam os códigos lingüísticos são cada vez mais diversificadas e exploram os sentidos. As capas coloridas quase hipnotizam e os desenhos grandes contam a história através de gravuras comuns ao imaginário infantil. O tato da criança é estimulado em livros que simulam texturas e delineiam formas. Os sons manifestam-se como “bônus” da história, ou em cd´s e fitas adicionais que contam a história do livro.

O público juvenil, que passa pela fase de rejeição a qualquer título infantil, tem que dividir o mesmo espaço com os menores, mas não totalmente. Os títulos para esse público ficam em lugares mais periféricos, de transição, contudo a presença deles no espaço infantil não é nula. Esses leitores já mesclam seus hábitos de consumo. Ora visitam sua seção própria e chegam a “bisbilhotar” títulos infantis, ora a seção de livros destinados ao público adulto.

A criança de forma mais ingênua e também o adolescente, se apropriam do livro como instrumento da imaginação, que permite sonhar com um futuro mágico e viver histórias fantásticas. Nessa fase de formação de identidade, o modo de apropriação feita pela criança e pelo adolescente do produto cultural é de suma importância. Os livros destinados a esse público trazem sempre “lições de moral”, ensinamentos, e agora, lições de convivência multicultural através de livros que apresentam culturas distantes, a exemplo do “Mahabarta – pelos olhos de uma criança” (livro secular de ensinamentos hindus) encontrado na Nobel em dois volumes. Preocupados principalmente com a formação da identidade dos filhos, muitos pais fazem as escolhas pelos pequenos e observam atentamente os produtos antes de leve-los. É comum observa-los sozinhos, ou acompanhados da criança que opina mas não decide. Muitas coleções têm um foco claro nos pais e tratam de temas relativos à sexualidade, ao futuro ou assuntos diversos (como exemplo, foram observadas duas coleções da mesma editora: “Satisfaçam minha curiosidade”, sobre temas como AIDS, Drogas e Religião; e Quando eu crescer quero ser...” sobre profissões.) . É muito comum observar essas séries destinadas ao público adolescente também com vários títulos como “ Coisas que toda garota precisa saber”, “Mais coisas que uma garota precisa saber”, e assim por diante.

O consumo editorial infantil sofre influência direta da mídia. Nessa área contudo, essa influência é menor que no consumo de cd´s e vídeo. Grandes conglomerados, como a Disney vendem sim muitos livros (com personagens licenciados), mas sua presença não é totalitária nas prateleiras. Os personagens da Disney ou da Globo (como os do “Sítio do Picapau Amarelo”) enfrentam forte concorrência de personagens como os de Ziraldo, ou Mafalda – que também têm apoio midiático – e de personagens desconhecidos da mídia massiva, como os dos livros de Maria Clara Machado. Isso não acontece no mercado fonográfico e cinematográfico, nos quais, os produtos de maior destaque e vendagem (ou locação no caso de fitas de vídeo e dvd´s), são fortemente publicizados pelos mass media.

Consumo e cidadania
Novas formas de pensar o consumo
e a democratização da cultura

Consumo e produção de sentido são formas de diferenciação social em tempos de globalização da cultura e da economia. As novas gerações formam identidades e criam sentimento de pertencimento e cidadania mais através do consumo cultural, seja dos mass media ou de produtos mais segmentados. É necessário portanto, pensar o consumo e sua produção de sentido de forma democrática. O acesso ao livro é ainda muito difícil em termos econômicos à maior parte da população nacional. Enquanto uma pequena parcela freqüenta os locais acima descritos, a maioria acaba substituindo o livro por outras formas de consumo: HQs, mídia massiva, etc. Segundo Canclini:

“A despeito da globalização dos bens matérias e da informação, da convergência planetária em certos hábitos de consumo, as tradições e crenças locais ou regionais continuam configurando diferencialmente o público e o privado, os processos de inclusão e exclusão.” (Canclini, 1996: 258)

Se consumir é pensar, produzir sentido, precisamos desenvolver práticas de consumo cidadão, a partir do novo contexto de formação de identidades em que vivemos, sejam elas no âmbito civil, institucional ou pessoal.

As identidades emergentes desse novo contexto já se manifestam com marcas de transnacionalidade e consumo exagerado. Através de comunidades de consumo, suprem à falta de uma unidade territorial e política clara. Não é possível, portanto excluir a população com menor poder aquisitivo ou menor acesso às tecnologias da informação da participação social. O consumo como forma de pensar deve formar gerações conscientes desse contexto e capazes de atuar socialmente como agentes de mudança.

 

Home
Projetos
Pesquisa
Fraude
Arquivo
Contato
Documentos