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Heróis com sangue azul Está aberta a temporada das migrações inter-mídia. Basta um produto fazer sucesso, e dar bastante lucro, para que em poucos meses ele seja adaptado para todo tipo de suporte imaginável. Desde séries de animação baseadas em brinquedos, como He-man e Pokemon , filmes em parques temáticos, Piratas do Caribe , até o imperialismo midiático de franquias como Matrix , Star Wars e Senhor dos Anéis. A Liga Extraordinária , história em quadrinhos de Alan Moore posteriormente adaptada para o cinema, é um exemplo interessante dessa combinação de mídias. Uma série de personagens clássicos da literatura inglesa de horror, ficção científica, fantasia e aventura foram colocados em um mesmo universo. É no mínimo inusitado encontrar em uma história em quadrinhos, um dos maiores símbolos da cultura pop, os personagens clássicos da literatura ocidental. O que poderia nascer desse cruzamento? Um Sherlock Holmes com a cueca por cima da calça ou, quem sabe, super-heróis com PhD em literatura?
O enredo se passa em 1889 na Inglaterra vitoriana, quando o misterioso M. contrata a Srta. Wilhelmina Murray ( Drácula de Bram Stoker) para uma estranha missão: reunir um grupo de homens, cavalheiros extraordinários, para formar uma equipe de agentes secretos a serviço do império britânico. Entre esses cavalheiros estão o explorador Allan Quatermain ( As Minas do Rei Salomão , de H. Rider Haggard), Dr. Jekyll ( O Médico e o Monstro , de Robert Louis Stevenson), o aventureiro submarino Capitão Nemo ( 20.000 Léguas Submarinas , de Julio Verne) e o infame Haley Griffin ( O Homem Invisível , de H.G. Wells). A principio, a tarefa de Mina é bastante complicada: Quatermain está aposentado, decadente e viciado em ópio, Jekyll/Hyde se mudaram para a França para assassinar prostitutas na rua Morgue, enquanto Griffin utiliza o seu dom da invisibilidade para estuprar garotas em um colégio interno. Antes de serem adaptados por Moore, todos esses personagens já freqüentaram diversos outros formatos da cultura pop. Seus enredos foram usados e reciclados dezenas de vezes para os mais variados fins. As aventuras de Alain Quatermain podem ser vistas no filme As Minas do Rei Salomão (que passou milhares de vezes na Sessão da Tarde). Na época eu cheguei a pensar que fosse apenas uma imitação de Indiana Jones, mas nada disso, Indiana é que é uma imitação dele. A história de Dr. Jekyll e Mr. Hyde também já foi adaptada para o cinema - O Segredo de Mary Reilly , de Stephen Frears -, além de ser usada como argumento para animações, revistas em quadrinhos e mesmo outros filmes - como em O Professor Aloprado . O enredo de O Homem Invisível , também trata das conseqüências que a falta de amarras sociais pode trazer ao homem. O personagem principal do filme O Homem sem Sombra , de Paul Verhoeven, foi abertamente inspirado em Haley Griffin. Nemo também freqüenta constantemente a Sessão da Tarde e hoje dá nome a peixes palhaços de filmes de animação em todas partes do mundo. Porém, Moore, ao invés de simplesmente adaptar da literatura algum enredo de sucesso, utilizou elementos de diversas histórias para construir um novo universo. Toda narrativa é construída em cima de citações, tanto a literatura clássica, quanto à história da Europa. Em uma determinada parte do enredo, quando os heróis ficam sabendo que sua primeira missão seria recuperar um artefato, que em mãos inimigas poderia ser utilizado para construir aeronaves, Mina Murray exclama: "A idéia de que uma nação rival... a Alemanha por exemplo... possa ser capaz de submeter a Inglaterra a um bombardeio aéreo é impensável". É, Mina, quem viver verá.
Além dos personagens principais, na Londres fantástica de Moore, podemos encontrar em cada esquina alguma das maiores celebridades da literatura européia. Só no primeiro número da revista temos a participação de Auguste Dupin (Edgar Allan Poe), Lemuel Gulliver (Jonathan Swift), Pimpinela Escarlate (Emmuska Orczy) e Pollyanna, a jovem otimista (Eleanor H. Porter). São mencionados também Nana Coupeau (Emile Zola), Robur (Julio Verne), o diabólico Fu Manchu (Sax Rohmer), o detetive Sherlock Holmes, seu irmão Mycroft Holmes e o famigerado professor James Moriarty (Conan Doyle). Este último é o chefe do serviço secreto inglês e atende pelo nome de M., o mesmo nome do chefe do famoso espião 007. Porém, as citações não se restringem aos personagens: praticamente tudo, de simples coadjuvantes a qualquer tipo de inscrição nas fachadas das lojas, placas e embalagens de produtos, é algum tipo de citação. Como um jornal que noticia erupções vulcânicas em Marte, a causa da famosa Guerra dos Mundos de H.G. Wells. A Liga Extraordinária é uma história de aventura, parecida em alguns aspectos com as antigas histórias de super-heróis. Porém, se o mundo da Liga Extraordinária é um mundo de super-heróis, seus personagens, originalmente, passavam longe dessa definição. Dos personagens principais da Liga, somente Allan Quatermain e Capitão Nemo tinham dotes heróicos em sua criação original e as características extraordinárias dos outros personagens, como Dr. Jekyll e Haley Griffin, tinham um papel muito diferente nos seus romances de origem. Enquanto a dupla personalidade do Doutor Jekyll é apresentada em um clima bastante sombrio em O Médico e o Monstro e a invisibilidade de Griffin, em O homem invisível , questiona os limites da moral humana, na história em quadrinhos eles, realmente, se aproximam bastante dos super-herois clássicos. Algumas de suas características foram modificadas, como o tamanho descomunal e a "visão termográfica" de Hyde, mas a principal mudança está na função que essas habilidades desempenham na trama. Moore infesta a Inglaterra vitoriana de criaturas extraordinárias, de heróis e super-heróis. A figura do herói na literatura romântica e literatura fantástica difere bastante do super-herói típico dos quadrinhos, sendo A Liga Extraordinária uma interseção entre esses dois mundos. O herói é um indivíduo que - seja por habilidades físicas ou mentais, virtudes morais, ou mesmo por alguma excentricidade - se destaca na comunidade onde vive. Porém, essas qualidades, apesar de muitas vezes parecerem exageradas, não são reservadas apenas a um ser sobre-humano; elas podem ser aplicadas a indivíduos concretos. Nas histórias em quadrinhos também existem muitos heróis, porém suas páginas são o habitat natural para super-heróis. Afinal, onde mais alguém pode ter uma identidade secreta com a ajuda de um mero par de óculos? A literatura romântica e a literatura fantástica estavam mais interessadas em mostrar a fragilidade do ser humano, seja por suas limitações ou por sua falta de caráter. Para o espírito romântico, era óbvio que qualquer ser humano com superpoderes certamente iria usá-los para suprir suas necessidades e desejos particulares, independente de ser ou não moralmente correto. Enquanto o herói possui habilidades excepcionais, porém não impossíveis, o super-herói clássico tem poderes sobre-humanos e não são afetados por aflições humanas. Nos tempos de Flash Gordon, Superman e seu clone, Capitão Marvel, a vida de super-herói era bastante fácil. Apesar dos ocasionais planos de cientistas malucos para conquistar a terra e de uma ou outra invasão alienígena, dificilmente eles levavam trabalho para casa. Nada de dor na consciência, dor-de-cotovelo ou crise de meia idade - suas personalidades eram exemplares e planas, a verdadeira encarnação do bem, enquanto seus inimigos eram eminentemente ruins. Porrada neles! Só se deve tomar cuidado para não bater forte demais e matar o coitado, garantindo assim o próximo número da revista. As histórias em quadrinhos mudaram desde sua época de outro, os anos 30, e A Liga Extraordinária é um exemplo dessa mudança. Para Nildo Viana, Doutor em Sociologia pela UnB e estudioso das histórias em quadrinhos, não se pode definir os super-heróis somente pelos seus super-poderes. "Um super-herói só é um super-herói quando tem que colocar em prática seus poderes. Isto só pode ocorrer havendo uma população de seres poderosos, num mundo em que ele vive e combate, ou seja, o super-herói só pode existir, ao contrário do herói, em constante relação com super-vilões e com outros super-heróis". Sendo assim, só em uma super-aventura, em uma aventura extraordinária envolvendo outros seres extraordinários, podem existir super-heróis. Exatamente como no mundo vitoriano hi-tech das histórias da Liga Extraordinária . Se Allan Moore não precisou mudar as características centrais de cada personagem para que eles funcionassem em sua HQ , o simples fato de transportá-los de diversos gêneros literários para uma história de aventura bastou para dar funções bastante diferentes às "excentricidades" dos cavalheiros. Como ele mesmo diz: "Tomei como base as equipes de super-heróis, que, na minha opinião, não funcionam na maior parte das vezes. Mas imaginei o que poderia fazer se retrocedesse no tempo, para o final da era vitoriana. Comecei a pensar como faria para reunir um grupo de personagens daquela época e quem seriam eles". Ao transformar os heróis, e mesmo anti-heróis, da literatura clássica em um grupo de seres fantásticos que se aproxima bastante da Liga da Justiça ou dos X-men, Moore consegue achar um meio termo entre o herói da literatura e o herói típico de quadrinhos. Se a Liga da Justiça tem os melhores super-heróis do universo DC, a Liga Extraordinária possui os "cavalheiros" mais extraordinários da literatura. Pelo menos, os da literatura inglesa. |
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